A máquina de inventar futuros
Em seu “Castelo dos Destinos Cruzados”, Italo Calvino imaginou o tarô como um cenário para a criação de histórias, um trançado que serviu de encontro para diversos personagens, cada um contando, através das cartas, seu sucesso, seu fracasso, seus amores e suas ilusões. Da mesma maneira, em “Último Amor em Constantinopla”, Milorad Pavic utiliza as cartas de tarô como um oráculo que serve de instrumento narrativo de diversas histórias que têm Constantinopla como centro.
O poeta afro-americano Stephen Jonas escrevia diversos poemas junto de seu exercício de tirar uma carta de tarô por dia. Em “A Caverna dos Destinos Cruzados’’, Monica Berger e Sérgio Viralobos se transformam em um lobo e uma pantera que passeiam pelos caminhos propostos pelos arcanos. Algo similar acontece em Aparte, de Antonio Oliveira e Cecília Manuel, quando as cartas servem como fundo para as histórias que se desvelam.
O tarô enquanto alfabeto, o oráculo enquanto linguagem. Ritmo, precisão e encantamento fazem parte do ofício do adivinho. Somos maquinistas, lançando carvão no motor de criar histórias de consulentes. Existe, porém, uma armadilha que perpassa o caminho de todo oraculista: nossos instrumentos são limitados. Não podemos fugir dos 78 caminhos que se seguem, nem ir além do roteiro disposto pelas cartas. Por outro lado, há uma série de vocábulos que serão escritos por nós. Costumo, em alguns jogos, sugerir livros, textos ou filmes para meus clientes. Só não sugiro nada que não faça parte do que eu conheça (e, sinceramente, costumo indicar somente meus favoritos, não sou muito imparcial quanto a isso).
Fica, então, a conclusão de que o oraculista é mais do que mero intérprete – talvez, um dia, assim tenha sido, como podemos perceber nas leituras fixas dos almanaques medievais, nos aforismos e nas listas de significados pré-fabricados. Sabemos, porém, que as respostas padronizadas não têm muita força no momento oracular: é preciso que os pontos-chave estejam em sintonia com a pergunta feita, com a pessoa diante da ferramenta oracular. Aí surge a máquina de imaginar de Cousté, que diz que o tarô serve para produzir novas imaginações, como comprovado por diversos autores que utilizaram desse oráculo como engrenagem para suas histórias.
A partir de conceitos predefinidos, juntamos nosso vocabulário pessoal, criando, então, a resposta para a pergunta que surge. A leitura de tarô é um quebra-cabeça onde somente algumas peças, 78 delas, estão dispostas. O restante será dado pela troca entre o consulente e o cartomante.
Existem, claro, regras a ser obedecidas: não podemos inserir tanto nosso dicionário interno a ponto de ele apagar os sinais dados pelas cartas – é preciso ter atenção, cuidado. As metáforas precisam ser precisas, pois o tarô é orador caprichoso e não gosta quando queremos aparecer mais do que ele.
Uma das coisas que mais me fascinam nos oráculos é a sua capacidade de resistência e, ao mesmo tempo, adaptação às mudanças pelas quais o mundo passa. Estamos diante de um baralho do século XV, feito por uma sociedade com tantas diferenças da atual – mas, mesmo assim, somos capazes de transportar os símbolos para nossos dias, ressignificá-los e, ao mesmo tempo, manter suas estruturas básicas, fazendo com que a ferramenta não perca suas características históricas. Ainda é um baralho do século XV, mas a leitura é do século atual. De certa maneira, estamos criando a partir dos limites propostos – assim como fazemos com a própria língua. Nenhuma palavra de nossa língua foge de nosso alfabeto. Não podemos pensar em um chapéu sem associá-lo à palavra “chapéu”.
Então, através desse jogo-desafio, estamos sempre na linha entre a interpretação e a criação. O frio na barriga, o embaralhar e o desconhecido são amigos de todo cartomante, toda improbabilidade nos é simpática. Em cada mistura de cartas, estamos diante de todas as pessoas do mundo, de todos os futuros possíveis.
Julio Soares - @fortunaarcana