Imagem: Neil Gaiman, Mike Dringenberg, Malcolm Jones III/DC Comics
Estive relendo Sandman, do Neil Gaiman - que pra mim é um exame sobre o lugar da imaginação e do sonho na nossa existência.
O que é, afinal, sonhar? É o sonho um fenômeno humano, ou - como acreditavam os antigos - os sonhos testemunham sobre a própria natureza da realidade, podendo inclusive prever o futuro (a arte da onirocrítica)? Nos quadrinhos (e pelo que sei, na série) Sandman não é um Deus, e sim um Perpétuo. Neil Gaiman sugere concebermos que o sonho, longe de estar restrito à biologia animal, é parte da própria estrutura da realidade.
O que me remete a um outro excelente quadrinho, dos consagrados que me introduziram no ocultismo: Promethea, de Alan Moore, é também uma deidade dos quadrinhos dedicada a imaginação - e que vem revelar que a vida não passa de uma história sendo contada pela Deusa a fiapos de proteína, "pequenas serpentes" entrecruzadas no brilhante caduceu hermético: matéria e espírito entrelaçados em uma dança. (E isso tudo ecoa vividamente o que propõem os budistas mahayana - que toda experiência condicionada, todo o samsara é "insubstancial como o tecido de um sonho").
Na intuição imaginativa de Gaiman, o Sonho dos Perpétuos - também chamado Sandman - é uma figura orgulhosa, taciturna, com propensão ao ressentimento, imperioso, preocupado e responsável. Seu corpo é pálido e magro, seus olhos escuros como a noite; ele se veste de preto. Astrologicamente, os sonhos são vinculados a Lua, um planeta fleumático, frio e úmido. O Sonho de Neil Gaiman tem, conversamente, um tanto de Saturnino. A melancolia está simplesmente escancarada em sua imagem e atitude. Notável ainda perceber que o instrumento de Sandman é a areia, o elemento terra - que se associa, no hermetismo, com a densidade e escuridão (e análogo à própria melancolia). O sono, em si, é saturnino - uma forma de torpor e escurecimento. Híbrido de Saturno e da Lua, Sandman governa seu castelo de ossos num mundo crepuscular - frio, porem repleto de vida sonhada. (Um dos arcos na história é precisamente sobre o processo de Sandman de se "humanizar", se aquecer um pouco, com a ajuda de gente mais simpática, como sua irmã Morte).
Isso me colocou a pensar num tema que figura na medicina humoral renascentista: a relação da bile negra, humor da melancolia, com a criatividade.
O médico e astrólogo renascentista Marsílio Ficino propõe que toda criação grandiosa é obra da bile negra, que permite o "frenesi" dos heróis, místicos e profetas. A bile negra, humor predominante no corpo do melancólico é de uma natureza fria e seca: seu papel no corpo é contrair (frio) e reter (seco). Ficino ensina que há diversas formas de bile negra: a que resulta da combustão de qualquer um dos humores é sempre maléfica, mas existe uma bile negra natural que pode ser processada para assumir uma forma sutil, e então pode ser misturada (dentro do corpo) na proporção certa com sangue e bile amarela. Um processo verdadeiramente alquímico, que tende a produzir um corpo e mente capaz de conter seus movimentos (externamente), sem no entanto entorpecer: e assim aproxima a Alma de seu centro, onde ela participa de outros planos de existência.
O fenômeno da imaginação depende da bile negra; é preciso conter o corpo para poder movimentar-se com a mente. Ficino diz que o corpo do sábio com a composição humoral adequada é capaz de "pensar idéias originais": estamos falando aqui da verdadeira criatividade, que é uma forma de genialidade. O frenesi, o furor heróico, o furor profético tem, talvez, expressão mais clara no imaginário moderno e ocidental no furor que toma o artista genial em processo de criação. O gênio manifesta seu caráter melancólico nas tantas vezes que sua missão o separa de sua família, de seus amigos, de seu sustento - e exige dele uma concentração quase devocional a um processo interior. (Isso aparece em Sandman - spoiler alert, acho? - como resultado da barganha faustiana que Sonho faz com Shakespeare: dedicado fanaticamente a sua obra teatral, ele parece não enxergar seu próprio filho). A concentração é uma retensão, uma retração das forças vitais - necessária para o que Deleuze chama de "viagem imóvel". Quando o corpo para de se movimentar (no espaço extenso), a alma ganha capacidade de se movimentar em um espaço intensivo, um espaço de sonho.
Mesmo a bile negra natural pode se acumular de formas pouco saudáveis, e as vidas desregradas dos artistas e boêmios tende a produzir também uma bile negra muito grossa, levanto a depressão, dificuldades psíquicas e finais de vida saturninos do tipo “ruim ao extremo”. O material frio e seco da bile negra tem tendência a se extremizar: é comparada por Ficino ao ferro, que se esquenta com facilidade, podendo atingir altas temperaturas - mas cai de temperatura igualmente rápido, podendo ficar mortalmente gélido. A busca de Ficino é trazer o corpo a um favorável equilíbrio humoral através da alimentação, ervas, talismãs e estilo de vida, onde a bile negra possa queimar de forma lenta e segura.
No que tange ao estilo de vida, todos humores tem uma função orgânica, e para que não se acumulem é preciso lhes dar expressão. A acumulação de fleuma, ligada a água, precisa ser expressada em lágrimas e emoções; a de cólera (bile amarela) em ações assertivas, o sangue em comunicação e idéias... A expressão própria da bile negra é a criatividade, uma força que, assim como Saturno, tende aos extremos.
Nos portões do castelo do Sonhar, escreve Gaiman, há dois portões: uma de marfim que só deixa passar sonhos falsos, e a outra, de chifre, que deixa passar sonhos verdadeiros. A imagem vem de Homero, mas expressa a natureza ambígua do sonhar, o perigo dos sonhos falsos - neuroses e ilusões, fantasias destrutivas - e a promessa dos sonhos verdadeiros - transe profético ou criativo. Ambiguidade esta que o pensamento renascentista re-coloca como um problema de alquimia - e de composição humoral.
Texto incrível, Iago! Baita inspiração!
Essa semana tava vivendo esse processo de ser quase engolida pelo ato de criar, mas não sabia como descrever. Muito bom<3