Os tronos moldáveis da realeza
Uma análise sobre os tronos do Rei de Copas e da Rainha de Espadas da escola inglesa
Uma das características que mais me impressionam nos baralhos de escola inglesa é a capacidade de transformar e dar certo protagonismo para atributos simbólicos que até então eram relativamente secundários. Explico: em baralhos como o tarô de Marselha o trono dos reis, do Imperador, Imperatriz, etc, nada mais é do que um simples testemunho do fato de que essas figuras ocupam papel real. No entanto, o trono é um símbolo muito maior. No imaginário medieval, ganha acepções interessantes: não apenas mostra o poder da realeza, como também a sua unicidade. Os reis não se sentam em qualquer cadeira. O trono é objeto de ambição não pela sua materialidade - afinal, não basta sentar-se nele para ser considerado digno -, mas pela representatividade. O trono é a “manifestação da grandeza humana” (CHEVALIER, p. 910).
Na escola inglesa, o trono aparece nas cartas reais como parte de seu reinado, sendo representação imagética, material, daquilo que compõe essas cartas. Dessa forma, proponho um olhar mais atento para duas figuras específicas: o Rei de Copas do baralho Smith-Waite e a Rainha de Espadas do baralho Harris-Crowley.
No Rei de Copas do tarô Smith-Waite, uma imagem curiosa: o seu trono “se assenta no mar” (WAITE, p. 153). Ora, um trono de pedra afundaria no oceano, mas não o trono do Rei de Copas. O desenho de Pamela Smith mostra um assento simples, opaco, sem grandes detalhes. Para o rei de copas, o importante é o mar, não o trono. A imagem do trono flutuante me agrada: ainda há a estabilidade e segurança da rocha. O símbolo de poder permanece, mas não é pesado a ponto de afundar. Este rei tem o conhecimento de que só sobrevive em seu reinado quem sabe navegar. Seu trono se torna, dessa maneira, um barco. Sem fixar longas raízes, o rei de copas consegue atravessar o reino das águas, aproveitando suas correntezas sem perder seu controle sobre si, sem perder a austeridade que faz dele o senhor das águas.
Na Rainha de Espadas do tarô de Thoth, o trono é formado por nuvens. A mistura do ar e da água, de acordo com o sistema de classificação da escola inglesa, pode gerar nuvens de tempestade ou de chuva fértil (DUQUETTE, p. 192). Crowley fala sobre como a parte aquática do ar é a “a elasticidade deste elemento, assim como o seu poder de transmissão” (CROWLEY, p. 161). A imagem da formação das nuvens é muito interessante: como as ideias, parecem surgir do nada, e, quando uma se forma, logo outras surgem dela, criando um verdadeiro organismo. Não podemos deixar de pensar, porém, em outro aspecto do encontro destes elementos: a sua instabilidade. Sentar-se em um trono feito de nuvens requer habilidade e leveza, características que estão dentro do campo semântico da rainha de espadas, essa dançarina de movimentos graciosos e equilíbrio excepcional (CROWLEY, p. 161). Mas, nessa lógica, o mérito deve ser da rainha, e não de seu trono, que sempre será de matéria intocável, instável. Um trono capaz de nos cegar e que é controlado pelas condições do ambiente, que segue as vontades dos ventos, pode ser uma armadilha. A Rainha de Espadas sabe que precisa estar sempre nas pontas dos pés, da mesma maneira que seus súditos sempre precisam ter cuidado quando pedem uma audiência com ela – caso queiram manter a cabeça no lugar.
Dois pontos de encontro me chamam atenção para os tronos da Rainha de Espadas e do Rei de Copas: sua instabilidade, ou, melhor dito, sensibilidade. Se o Rei de Copas se apega aos sentimentos, este trono afunda, pois os apegos e as raízes são assuntos das pedras e da terra. Submerso no fundo do mar, seu trono não será mais do que uma teimosia, um naufrágio para lembrar que o controle sobre as emoções é puro delírio. O Rei de Copas sabe, enquanto rei, que o mar é instável e, logo, seu trono deve servir de bote salva-vidas, de boia. Ele precisa ter a sabedoria para poder sentir todos os sentimentos que englobam seu território – tarefa que somente ele pode cumprir – mas sem se afundar em nenhum deles. A Rainha de Espadas, por sua vez, deve manter sua leveza a todo custo. No momento em que se deixa levar demais pelos sentimentos, as nuvens se adensam, alimentadas pelos pensamentos que criam, e tudo é coberto por uma névoa espessa e fria. Enquanto água do ar, ela deve ser capaz de dar fôlego aos sentimentos, transformá-los em inspiração, coreografia e reflexões. Da mesma maneira, dela se exige um certo desapego sobre seu próprio reino. Ela e o Rei de Copas estão em tronos que mostram que, acima de tudo, é necessário um desapego daquilo que se gerencia. Gerencia, porque eles não controlam nada, apenas direcionam a maneira como se colocam diante de seus assentos reais.
O que me leva para um segundo ponto interessante: o trono desses dois é móvel, um meio de transporte. Uma das características da escola inglesa é a crítica à imobilidade dos reis, coisa que fez com que, no sistema da Golden Dawn, os reis fossem rebaixados ao posto de príncipe (e, sim, o mesmo acontece até mesmo no tarô de Smith-Waite, isso só está escondido). Todavia, Harris e Smith criam uma corte com tronos tão leves que eles servem não apenas para resistir às tempestades dos terrenos aquários e aéreos, como também como instrumentos de mobilidade e expansão. O Rei de Copas e a Rainha de Espadas estão em todos os lugares onde há mar e ar.
Dessa maneira, ambos mostram claramente que o domínio, a regência, não precisa de rigidez abrupta. Claro, mão firme é necessária, mas a mão firme deve ser acompanhada de pés ligeiros e pouco peso. Sem rancores – no melhor aspecto das duas cartas, cujo negativo demonstra um gosto e até mesmo prazer no ato de sentir ojeriza -, o Rei de Copas e a Rainha de Espadas conseguem fazer claras as suas regras e, ao mesmo tempo, ter a mobilidade necessária para que seus poderem fluam naturalmente. Afinal, estamos falando dos elementos cujo movimento é eterno, sem a necessidade de combustíveis externos, e que conseguem circular os maiores dos obstáculos. É a alma da criatividade, algo presente nessas duas figuras, cada uma em seu particular. Tronos móveis para expandir os domínios, para não viciar nos próprios métodos, para sempre existir a possibilidade de novos ares e amores.
Julio Soares
Bibliografia:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 29ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
CROWLEY, Aleister. The book of Thoth. 4ª. ed. São Francisco, Califórnia: Weiser Books, 2020.
DUQUETTE, Lon Milo. Understanding Aleister Crowley’s Thoth Tarot.
WAITE, Arthur Edward. O Tarô ilustrado de Waite. Ilustrações de Pamela Colman Smith. Porto Alegre: Kuarup, 1999.
Julio, que lindo esse texto! Entendi muito melhor essas duas cartas e amei a expressão "dar folego aos sentimentos, transformá-los em inspiração, reflexão" sensacional!