Passei os últimos anos em uma baita crise filosófica quanto a ideia do "eterno". Saí da faculdade de ciências sociais, mais de uma década atrás, bastante impressionado com a "virada ontológica" que acometeu a antropologia, uma virada que resgatou antigos nomes da filosofia (Nietzsche, Spinoza) e das ciências sociais (Tarde) e colocou-os a dialogar com a metafísica dos povos nativos ameríndios, convergindo sob uma mesma bandeira: o perspectivismo. Este movimento filosófico me parecia o único capaz de varar através dos dualismos que praguejam a mente ocidental: matéria e espírito, racional e irracional, animado ou inanimado. Na visão perspectivista, não há uma essência fundamental, Verdade ou unidade subjacente a ser descoberta pela razão; há apenas diferença - diferença diferindo de si mesma e não como a sombra ou falta de uma identidade.
As consequências dessa virada são colossais. Sem o Uno ou o Real garantindo um lugar aos céus para nossa razão, o saber se torna, nas palavras de Donna Haraway, "localizado" - num certo planeta, num certo lugar, num determinado dia alguém tem uma ideia (e talvez pense também que essa ideia é universal). Não existe nada além de perspectivas: nenhum olho transcendente dos céus vem resolver a confusão das incontáveis perspectivas para nós. O que não significa dizer que as perspectivas dão todas na mesma - chamar o pensamento de volta ao corpo que enuncia é precisamente resgatar suas singularidades, as condições que o tornam específico.
Há muitas armadilhas nessa ideia - como atestado na apropriação grosseira que se fez do "lugar de fala" no discurso progressista mainstream sobre identidade. A identidade, no perspectivismo, sempre chega por último, uma diferença ela mesma que vem recobrir as outras, esgotando sua potência de diferir, coagulando-a num mínimo. É preciso abafar o caos da constante reinvenção do mundo para que possamos impor alguma ordem sobre as coisas.
A minha adesão juvenil ao perspectivismo foi sacudida por uma série de experiências visionárias na década passada, muitas delas sob a força da ayahuasca. Nelas encontrei uma parte de mim que inspirava profunda reverência, mas havia como que "parado no tempo", talvez num tempo antes mesmo de eu nascer. Uma parte algo supersticiosa, que temia o diabo e conversava com Deus. Encontrei paralelo entre essa experiência e o que viveu Jung, que (segundo nos conta em seu autobiográfico “Memórias, Sonhos e Reflexões”) descobriu, desde bem novo, morar dentro dele uma “personalidade número 2”, que se vestia e agia de maneira antiga. Foi também seguindo os passos de Jung que me dispus a conviver com essa “personalidade 2” e suportar a tensão resultante, deixando que se desdobrasse.
O meu "reaça" interior parecia querer que eu aprendesse o que entitulei "a língua esquecida do meu avô" - o discurso “atemporal” da filosofia sacra. Voltei a consumir literatura de ciências sociais vorazmente, dessa vez focando nos fenômenos religiosos - buscando as raízes do neo-hermetismo e neo-paganismo que o século XX tinha me apresentado. Nesse período, li um bocado de gente reacionária também - perenialistas e até alguns fascistas, Foi nessa busca que redescobri o platonismo, a filosofia grega em seu aspecto mágico e ritual... E finalmente, a astrologia.
A prática astrológica foi um ponto culminante nesse processo. Até então, eu me movia motivado por sonhos e visões, coincidências mágicas, inexplicáveis, e pela minha intuição. A astrologia expôs as entranhas do Relógio do Mundo, e as "coincidências mágicas" se tornaram o feijão com arroz de todos os dias. Toda vez que um oráculo "acerta", seja em previsões concretas, seja quando acerta na alma do cliente, a magia se prova matematicamente entranhada em todas as coisas.
Muitos astrólogos buscaram reter, dentro desses movimentos oraculares misteriosos, um senso habitual de causa e efeito; explicando a astrologia através de raios, ondas ou emissões enviadas pelos planetas. Mas os avanços da observação científica tornam cada vez mais remota a esperança de identificar "ondas" capazes de causar efeitos complexos (como os previstos pela astrologia) aqui na Terra.
Há contudo, desde os primórdios da astrologia, uma outra abordagem filosófica - uma que toma o céu como *índice* e não causa. Os planetas apenas ponteiros do tal "Relógio do Mundo", enquanto a causa verdadeira de todos os fenômenos (assim defendiam os filósofos platônicos) era o Uno, a inteligência e a Alma que dele emanam. Os planetas são apenas um desdobramento, no plano físico, de um fenômeno espiritual; "iscas" deixadas na natureza para que pudéssemos relembrar essa morada eterna, essa Alma que está além do tempo (e também o atravessa).
E foi assim, nessa escaramuça com os mistérios da magia e dos oráculos que fui fisgado, enfim, pro platonismo - fazendo um meio termo entre pagão pós-moderno que havia em mim e o reacionário ainda algo cristão. O platonismo (e seu irmão, o Hermetismo) me permitiam colocar pra conversar a umbanda, o cristianismo, a religião de estado romana, os cultos de mistério, os pitagóricos, os filósofos pré-socráticos e a astrologia: uma espécie de "língua franca" teológica no ocidente.
E assim se instalou a tal crise filosófica que mencionei ao abrir o texto. O platonismo é, em grande medida, uma forma de pensar "eternalista". Frente a multiplicidade confusa do mundo, ele nos consola ao convidar a alma de volta ao Uno de quem se origina - através dos símbolos concretos (estrelas, planetas, pedras e plantas) e das ideias a que eles nos remetem: ideias universais que é preciso rememorar. Há algo perigosamente autoritário nisso, e o platonismo também se expressa como projeto de estado: entronizando filósofos como reis capazes de ditar as ideias certas, banindo da República os poetas - e enfim a própria diversidade, que não passaria de simulacro, ruído e caos.
Enquanto minha prática astrológica e mágica se tornava mais e mais platônica, meu apetite pelo perspectivismo, somado um período de experimentação com meditação vipassana foram me aproximando também do budismo. A prática do vipassana consiste em observar cada fenômeno que compõe nossa percepção, no mais mínimo e sutil detalhe, constatando, enfim, que toda sensação é impermanente, está em constante surgir e desaparecer, constante mutação. Isso inclui até as sensações que compõem o senso de si, o "ego": essas sensações também não tem nenhuma solidez, surgem e desaparecem a cada mínimo instante. Tudo isso é produzido por causas e condições, e também se torna causa e condição pra que novos fenômenos surjam incessantemente.
Em meu primeiro retiro de meditação, isso me levou a uma situação de quase pânico: nem as montanhas onde eu apoiava meu corpo eram firmes. Estava tudo escoando, escorrendo, e mudando constantemente, sem descanso e sem ponto fixo de chegada. Eu persisti ainda assim na prática, e ao fim do retiro eu me sentia muito firme e bem alinhado: é como se uma sanidade básica houvesse voltado a meu corpo, uma aceitação - às vezes um deleite - com a energia em movimento, uma energia que cresce conforme se movimenta. Assim foi se consolidando em mim uma poderosa intuição: onde quer que haja algo de fixo ou eterno para me segurar, onde quer que eu me fixe, ali estou também construindo uma prisão que perpetua uma forma de sofrimento: impor uma ordem em um mundo em constante transformação.
Muitos anos se passaram ainda antes que eu firmasse um compromisso formal com o caminho do Senhor Buda. E agora que estou nesse caminho, a mais estranha lição tem sido a de segurar firme no Darma - nos ensinamentos de Buda - e no entanto não torná-los numa ferramenta dogmática que me feche para a sanidade fundamental que existe em todas as coisas. Os próprios ensinamentos de Buda muitas vezes recorrem a ideias que parecem essencialistas, como a “natureza de Buda”, mas não passam de um meio para nos nortear em etapas determinadas de nossa travessia. E o platonismo, ele mesmo, não é coeso e dogmático em seu essencialismo como às vezes eu mesmo acreditei; é atravessado por suas próprias tensões internas entre a afirmação de ideais eternos e o mistério de um Uno a que não se pode, a rigor, dizer sequer que existe (pois seria a fonte da própria existência).
Vejo em mim com cautela o meu gosto por enunciar universais, e acho que há um perigo quando nos deixamos seduzir pelos nossos conceitos, fixando-se neles como se fossem mais que isso: algo que surge num lugar, num dia e ano, e depois passa. Conceitos transitórios que inspiram também reverência, pertinentes como são a esse mundo de multiplicidade em que vivemos, onde nada existe em si mesmo mas em tramas de relações: vizinhos como somos de pedras, plantas e animais - assim como de estrelas, planetas e os signos poderosos que eles nos inspiraram a criar.