[uma intro]
Primeiro preciso pedir perdão a todos os deuses da escrita por ter me valido desse recurso rídiculo de usar parênteses pra criar efeito em título, mas escrevendo a gente tem que fazer o que é necessário e depois OI! Eu cheguei meio atrasada na newsletter, mas estou aqui.
[o assunto, o termo "manipulação"]
Esse ano eu voltei a dar aula e isso sempre me faz pensar no Tarot como um instrumento. Quando estou só jogando não é assim que o vejo porque ele já virou meio que um braço meu, um dedinho, um atavismo desenterrado numa arqueologia doida aí que não se explica. Mas sempre que retorno à posição de instrutora ela me conduz a repensar o Tarot como um instrumento porque assim como um prato, um vaso de argila, um alicate de unha, é isso que ele é. E a minha noção de instrumento não é filosófica, ela é bem tangível, assim como as cartas são tangíveis quando você as segura como um maço. Há duas imagens, símiles, metafóras acerca do Tarot muito fixadas na minha mente: primeiro, o baralho como um computadorzinho simples, um pensebem, um terminalzinho vagabundo cujo desempenho vai depender muito de como ele é programado. Quando você começa a estudar, usa scripts prontos, mas chega um momento em que não tem escapatória, você precisa criar sua própria programação e programar sua técnica e suas incursões ao território oracular.
[mas de onde eu tirei isso?]
Um tempão atrás (XVIII + XXI), eu tive uma conversa bem tensa (2E) e nela eu defini uma certa pessoa como "manipuladora" (I). Eu estava pensando num sentido bem ríspido palavra (ÁsE + 5E), nalguém que está movimentando as pessoas como se elas fossem títeres, fantochinhos (I + XV + 8E). A pessoa com quem eu estava conversando não hesitou um milésimo de segundo (8P) e respondeu "você também é" (VI + XVIII). Na hora eu até consegui fazer a manutenção do carão (2O), mas essa resposta foi como uma flecha estourando um músculo mental (8E). O assunto acabou alugando uma quitinete na minha cabeça (5E) e tempos depois eu trouxe esse assunto em outra conversa com outra pessoa e ela chegou praticamente com um mop pra passar pano (XIV) dizendo que o termo manipulador, quando usado especificamente naquele contexto daquela outra conversa deveria ser analisado de forma diferente porque ela estava usando outro nível e teor de linguagem e isso e aquilo. Eu até entendi o que essa pessoa disse, eu até concordo, sintagma versus paradigma, Saussure está vivo e tudo isso, mas eu engoli? Eu não engoli, não.
[manipulando o rancor como um ourives manipula o metal]
Eu costumo dizer que tenho defeitos ativos e passivos, e ser profundamente rancorosa é meu defeito passivo mais pronunciado, e ele forma um parzinho perfeito com meu defeito ativo mais amplo, que é ser obcecada. Não é tipo que eu não esqueço as coisas, não é que as digestões dos meus sistemas mental, emocional e energético sejam lentas, é que eu sou rancorosa como as pessoas são poetas. Eu pego a tinta daquelas ocorrências infelizes e transformo ela numa goma que pode ser esticada, moldada, esculpida, construída e isso vira imagens, frases, rediscussões, repisamento, repensamento, vira uma epopéia, tem cantos, fases, volumes, versificação própria, se bobear você acha o ISBN. Meu rancor não é líquido e também não é pétreo, ele é uma liga metálica de forma pouco fixa, ele fica lá pulsando, crescendo e diminuindo. E esse ser estranho é exposto nas galerias da minha mente e do meu coração eu visito, volto pra ver de novo em outra hora do dia, com outra luz, analiso, resenho, eu mesma leio a resenha e avalio e aí é como se a obra sumisse, como se ela fosse caminhando e se afundasse no mar e parecesse que sumiu pra sempre, mas o mar às vezes devolve essa oferenda, só que aí ela volta pequenininha: uma bolinha, folhinha, um mosquito, uma pétala, um barbante, uma pedra, o corpo antigo de uma cigarra. Aí olho essa coisinha e falo "nossa, aquele escândalo todo lá foi por causa disso aqui?". Mas não tivesse o escândalo não ia ter diminuído pra esse tamaninho e eu tenho lua em Áries, considero que uns sólidos 75% dos meus escândalos produzem pérolas. Parece uma grande imbecilidade e uma perda de energia construir uma epopéia gigantesca da qual só vai sobrar um fragmento, um haikaizinho. Se eu fosse menos burra talvez eu conseguisse chegar diretamente no kaikai, tem gente que faz, eu já vi ao vivo, é lindo, talvez amadurecer seja chegar nos haikais ou pelos menos em formas poéticas menores que epopéias. Mas eu claramente ainda não cheguei lá.
[obcecando com a manipulação]
E como sói acontecer eu fiquei absolutamente obcecada com a ideia de manipulação e aí eu comecei meio que a sangrar a ferida pensando em todas as milhares de perninhas de aranha que a palavra manipulação pode carregar. E levei isso pra dentro do baralho, não como jogos, mas como objeto de estudo do obcecado. Usar o Tarot pra pensar. Usar o Tarot sem usar as cartas. Não estudar só as cartas, mas estudar o instrumento. Desmanchar uma obsessão usando a própria obsessão como ponto de partida.
[as frutinhas que eu consegui com esse método profundamente amaldiçoado ou 6 tipos de manipulações via baralho]
(1) Sendo o Tarot um instrumento e você indo lá mexer nele, você pegando as cartinhas e movimentando elas, embaralhando elas com suas mãozinhas isso é literalmente manipular o oráculo. Ele não anda sozinho, ele não é automático é preciso a infusão da [plenasmo] manipulação manual pro baralho viver.
(2) O ato de embaralhar é uma dupla manipulação, já que você mexe nelas com as mãos e as desce para mesa. As cartas que caem são vistas como aleatórias, mas são mesmo? Quantas vezes você embaralhou? E se tivesse embaralhado mais? Porque esse número, por que não mais, por que não menos? O embaralhar pra criar uma nova ordenação das cartas que responde a questão é manipulação.
(3) Quando decide aprender o Tarot, você será apresentado a 22 passagens maiores e 56 portinhas menores, um monte de visõezinhas de mundo, mas isso não basta: você vai ter que aprender a concatená-las e nessa concatenação sempre surge um novo feto de Tarot. Sempre que uma pessoa arruma um baralho e começa a jogar nasce um novo bebê-pensamento-tarológico, pois existirão significados para as cartas em determinados contextos que só aquela pessoa vai acessar porque só ela é ela e pensa como ela. Apesar de haver um monte de contextos sociais, culturais e existenciais em que essa pessoa está inserida e nos quais ela funciona fazendo igual a todo mundo, não adianta: tem uma luzinha dentro da pessoa que é só dela e é essa luzinha que orienta o Tarot, então toda vez que alguém resolve jogar, o Tarot enquanto entidade cósmica é manipulado porque se inseriu mais uma célula e apesar de ela ser igual a todas as outras, ela tem pontinhos em que ela é diferente de todas as outras. Então ao aprender o Tarot você manipula a teoria tarológica pra entender como as cartas funcionam e depois que você aprender, irá agir sobre essa teoria e criar um prato novo, uma nova receita, mesmo que você não seja dos mais vanguardistas ou originais. Transpor o baralho pra vida, ver ele acontecendo tendo da sua vida, conseguir enxergar as coisas da vida em linguagem de Tarot: isso cria um Tarot novo, que é o seu. Não seu baralho, mas seu universo mental acerca do Tarot, que pode ser extenso ou limitado. Extenso ou limitado não quer dizer bom ou ruim. O Tarot que tem dentro da sua cabecinha. Então o Tarot, que é uma forma mais ou menos fixa, vai sendo manipulado pela sua mente e quanto mais você joga, quanto mais você é jogado, quanto mais visões tarológicas, de escolas ou de outros tarólogos, você vai conhecendo, mais diferente da tradição ou do que quer que você siga, seu tarot pessoal vai ficando. Aprender o Tarot é manipular o Tarot.
(4) Tem muita gente que fala que o tarot é um instrumento de iluminação, mas não acho não, hein? Acho ele um instrumento de distorção: no mundo manifesto, físico, terreno, todas as coisas acontecem ao mesmo tempo e sem parar. Quando levamos um assunto para o Tarot e as cartas são abertas, a primeira coisa que acontece não é o aconselhamento e nem a previsão: geralmente a primeira coisa que está ali é um retrato da situação e só depois de ter lido isso o tarólgo poderá aconselhar ou prever o futuro. Às vezes nem tem nenhuma das duas coisas, às vezes o que o consulente precisa é ver a situação nessa forma de retrato, nessa forma fixa, nessa forma em que ele poderá ficar ali ouvindo o tarólogo e tirando dúvidas, com o tempo parado, como um pause num filme, um pause não, um slow motion. Então quando você joga o Tarot você pode até clarificar as coisas, mas antes você precisa ditorcê-las, porque você está desmontando elas. O tarólogo que ainda não sabe dançar direito com o jogo pode acabar não conseguindo retirar os efeitos da distorção de sua fala e, assim, causar ainda mais confusão no consulente já confuso. Mas pode acontecer também do tarólogo maravilhoso, caríssimo, não conseguir passar a mensagem. Várias coisas podem acontecer aqui e eu não vou entrar em todas elas agora, mas essa distorção também é uma manipulação da realidade. O bom tarólogo é que o consegue distorcer a realidade pra por os olhos lá dentro e entregar essa varredura pro cliente sem a distorção. Difícil, né? Pois é, nóis é tudo doido.
(5) Escolher de qual escola você vai participar é manipular o Tarot porque apesar de você saber que existem outras escolas, você vai escolher ficar com aquela ali limitando ou ignorando os significados das outras, o que é manipulação também e essa aqui é foda, porque tem vários aí achando que ele sabe o Tarot correto, mas o de Joãozinho é errado. Então escolher sua escola também é manipulação, mas na minha visão é menos sobre certo e errado e mais sobre personalidade e o que combina com você. Eu amo jogar Marselha, eu sou regular pra boa jogando Marselha. Eu brilho mesmo é dentro do Thoth, então eu escolhi estudá-lo mais profundamente que os outros. Manipulei etc etc.
(6) Escolher que jogos você joga é manipulação porque é como se você estivesse escolhendo a tela do seu minority report. Você pode gostar de ver muito, de ver pouco, de ter todos os detalhes ou de passar só o que é importante. Isso vai impactar no seu estilo de leitura das cartas e em quem gosta e quem não gosta de ler com você. Manipulação.
E só depois de pisar e repisar todo esse papão aí eu consegui ficar de boa com o dia que fui chamada de manipuladora.
[tirar os frutos amaldiçoados da cesta não é a minha]
[eu como todos os eles, comer laranja do lixo conceitualmente é um dos meus caminhos mágicos]
[nada que está dentro de mim em isolamento pode ser muito pior que o conjunto da obra, eu vou comer sim]
[como você pode inventar formas de estudar o baralho sem aulinha, sem ser jogar, sem ser ler livrinho?]
O ponto (4) é de uma beleza que me fez ficar boquiaberta. Eu não trabalho com Tarô. Trabalho com Astrologia Tradicional. Pensar nesse processo de 2dimensificação de algo que está ali, misturado e em movimento feito uma rinha de galo acontecendo, me fez repensar sobre o trabalho e o aprendizado que é ficar fazendo essa tradução. Obg