1. Amargo tempero
Todo o encanto da vida é baseado no retorno regular dos objetos exteriores. A alternância do dia e da noite, das estações, das flores e das frutas, e de tudo o que vem a nós por períodos fixos, de que devemos e podemos desfrutar, eis as verdadeiras engrenagens da vida terrestre. Quanto mais somos abertos a esses prazeres, mais nos sentimos felizes: mas se a diversidade desses fenômenos se agita diante de nossos olhos sem que participemos dela, se não somos receptivos a essas doces tentações, então sobrevém o maior mal, a mais grave doença: consideramos a vida um peso nauseabundo. - Goethe
Os quatro humores. Uma representação alquímica dos quatro humores em relação aos quatro elementos e seus signos zodiacais. Xilogravura da “Quinta Essentia” de Leonhard Thurneysser, Leipzig, 1574.
A teoria dos quatro temperamentos, também conhecida por teoria dos quatro humores, foi consolidada ao longo da história nos diálogos entre inúmeras áreas, como a filosofia, fisiologia, medicina, farmacologia, alquimia, astrologia, teologia, antroposofia, psicologia, artes e literatura. Trata-se de um sistema originado na Grécia Antiga, cujos fundamentos, segundo Klibansky e Panofs [1], seriam: i) a busca de elementos primários simples ou qualidades simples, aos quais se pudesse reduzir diretamente a estrutura complexa e aparentemente irracional tanto do macrocosmo quanto do microcosmo; ii) o desejo de encontrar uma expressão numérica dessa estrutura complexa da existência corporal e espiritual; iii) a teoria da harmonia, simetria, isonomia ou proporção perfeita entre partes, materiais ou faculdades, que os gregos consideravam essenciais para qualquer valor, seja moral, estético ou higiênico.
A filosofia pitagórica, por exemplo, valorizava as expressões numéricas e os teoremas matemáticos como os responsáveis por aproximar ao máximo o espírito humano da perfeição do cosmos. Em outras palavras, os pitagóricos buscavam apreender da natureza material, incluindo a natureza do corpo humano, os princípios matemáticos que regiam suas formas. Princípios matemáticos que denotam, portanto, a perfeita racionalidade cósmica por detrás da materialidade. A harmonia dessa racionalidade cósmica era vista pelos pitagóricos especialmente no número quatro (4):
Eles costumavam jurar pelo número quatro, “que contém a raiz e a fonte da natureza eterna”; e não apenas a natureza em geral, mas o homem racional em particular, parecia-lhes ser governado por quatro princípios, localizados respectivamente no cérebro, no coração, no umbigo e no falo [2].
Um mundo teoreticamente construído para ser simétrico [3], como a rosa dos ventos a soprar pelas quatro direções: leste, oeste, norte e sul: “Assim se constrói um cosmo coerente, cujas quadripartições fundamentais se encontram no corpo humano, e nas quais o tempo é apenas o percurso regular de quatro estações” [4]. Portanto, dessa relação com o número quatro surgiu algumas das divisões mais conhecidas na tradição da astrologia: i) quatro qualidades primitivas na matéria: quente, frio, seco e úmido; ii) quatro elementos: ar, fogo, terra e água; iii) quatro estações do ano: primavera, verão, outono e inverno; iv) quatro idades humanas: infância, juventude (adolescência), maturidade (adulto) e velhice. E, por fim, os quatro temperamentos relacionados com as divisões anteriormente citadas, conforme tabela abaixo:
De acordo com a teoria dos temperamentos, esses quatro humores estão presentes harmonicamente em toda matéria, bem como na condição física e psíquica do ser humano, influindo na sua aparência, suas maneiras, além de sua saúde e bem-estar. Contudo, quando desequilibrados, os humores podem causar doenças físicas e mentais. Nas palavras de Robert Glas:
As diversas qualidades do homem eram então explicadas pelo modo como os indivíduos eram “temperados” pelos quatro elementos naturais existentes. Os quatro elementos – terra, água, ar e fogo – misturavam-se diferentemente em cada ser humano, dependendo dessa mistura o aparecimento de um determinado temperamento com maior intensidade. Há, pois, uma íntima relação entre os quatro elementos e os quatro temperamentos: o melancólico, o fleumático, o sanguíneo e o colérico. (...) O estudo da fisionomia, que também procura evidenciar as características dos temperamentos, deveria constituir uma ajuda para médicos e educadores [5].
No mesmo sentido aponta Surany, em seu Manual de Astrologia Médica:
A cada parte do corpo, a cada órgão, a cada membro corresponde um elemento, um signo zodiacal, um planeta. Da cabeça aos pés, nossa forma corporal está ligada, até a dissolução definitiva, ao macrocosmo que a governa [6].
“Typus Sympathicus Microcosmi cum Megacosmo”. O macrocosmo e o microcosmo eram centrais para a Astrologia Tradicional: os seres humanos (o microcosmo) refletiam o universo maior (o macrocosmo). Órgãos corporais são mostrados, juntamente com símbolos zodiacais e planetários. As linhas pontilhadas são rotuladas em latim com o nome das partes do corpo para as quais apontam. O anel externo nomeia várias plantas, doenças e alimentos relacionados a cada parte do corpo. Obra de arte contida em um dos volumes do “Oedipus Aegyptiacus” de Athanasius Kircher (1601 - 1680).
Foram os antigos pitagóricos grande influenciadores dos estudos de Aristóteles, Hipócrates e, no medievo, de Galeno e Avicena, contribuindo nesse período histórico para a definição de saúde como o equilíbrio entre as qualidades dos temperamentos e a doença como a predominância de um só humor sobre os demais [7]. Quando um dos humores estava atacado, as técnicas medicinais da época orientavam a fazer com que o corpo expelisse esse excesso humoral através das secreções do corpo. Assim, os temperamentos foram relacionados com alguns fluidos corporais: o humor sanguíneo estava diretamente associado ao sangue, leve e fluido como o ar; por sua vez, a cólera era corrosiva e quente como o fogo, expelida pela bílis amarela; a fleuma aquosa se relacionava com a linfa e o muco produzido pelas membranas do pulmão; e a melancolia era chamada de bílis negra, produzida no baço e, dentre todos os humores, a mais difícil de ser removida devido à sua densidade, como a terra.
Para Starobinski, a Melancolia, “em virtude da analogia, se veria ligada à terra (que é seca e fria), à idade pré-senil e ao outono, estação perigosa, na qual a atrabílis exerce sua maior força” [8]. Densa, fixa, obscura, enigmática – a Melancolia é certamente um dos humores mais representados nas obras de arte, na literatura e nos tratados filosóficos. Em sua origem grega, a palavra significa bile negra: “melas” (negro) e “kholé” (bile), que corresponde à transliteração latina melaina-kole [9]. Sua cor negra é sinistra, “tem a ver com a noite e a morte”, já a bile é “amarga, irritante, acre” [10]. Causadora de terríveis males no corpo e, sobretudo, na mente como o medo, o vazio, a misantropia. Mas também era vista por Aristóteles e Marsílio Ficino como a mãe das almas solitárias e intelectualmente inquietas, dos grandes sábios, dos eremitas e eruditos. Porém se não tratada, levaria o pobre indivíduo à loucura, atônito perante a vastidão do universo que sua mente não pôde ao todo compreender (e controlar). Como diria Nietzsche, “se você olhar demasiadamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” [11]. Um estudo sobre a Melancolia é sempre um olhar para o abismo existencial que estrutura cada um de nós. Um estudo sobre a condição humana expressa em tantas belas alegorias e símbolos.
Te convido agora para esse mergulho. Mas antes, respire.
“Melancholy”, escultura de Albert György, 2012. Localizada nas margens do rio Genebra, na Suíça.
2. Onde há cetro, há medo
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
- Hamlet
O ator Edwin Booth (1833 –1893) como Hamlet.
“Onde há cetro, há medo” era um provérbio alemão muito falado durante o período do Absolutismo Europeu [12]. Período marcado pela arte renascentista e barroca, as quais retratavam o abismo (ou seria limiar?) da relação entre príncipes e tiranos, entre luz e sombra, entre heroísmo e vilania. Muitas dessas obras refletiam sobre o poder que o monarca usufruía como um verdadeiro peso que pra sempre ele carregaria – sua sina, sua sentença. Uma vez com o cetro em mãos, a qualquer momento o monarca poderia ser deposto, traído por seu irmão, por exemplo. Trata-se da figura do Monarca Melancólico, segundo Moacir Scliar [13]. É como conta a história de Hamlet, de Shakespeare. Certo dia o jovem príncipe, herdeiro legítimo ao trono, descobre que seu pai, o Rei, fora assassinado por seu tio. Assim, Hamlet se “vê desiludido com o mundo; incapaz de vingar a morte do pai, como faria alguém ‘sadio’” [14], embora seguisse sufocado pelo sentimento de injustiça. Dessa forma, o jovem príncipe sofre por não saber agir e menospreza a si mesmo [15]. A apatia, a lentidão e a indecisão são também características associadas à melancolia.
Detalhe da gravura “Hamlet e Horácio ao Cemitério”, de F. Wentworth, 1870.
Mas a melancolia do monarca destronado é uma alegoria que remonta a um tempo bem anterior ao período renascentista e barroco. Em verdade, podemos afirmar que um dos primeiros reis destronados se tornou o pai da melancolia – Saturno, ou Kronos (Κρόνος), o deus do tempo para os gregos. Filho de Geia ou Gaia (Γαία), a Mãe-Terra, com Urano (Ουρανός), o Céu primordial, Saturno foi tomado pelo mesmo sentimento de injustiça de Hamlet, dessa vez ao ver sua mãe sendo fecundada por seu pai irreprimidamente, Então ele pegou a foice das entranhas de sua mãe e castrou Urano, tornando-se o novo soberano de um universo ordenado, chamado na Grécia Antiga de Idade de Ouro. Saturno governava em nome de Geia, por isso se tornou patrono das inúmeras artes associadas à terra, como a Geologia, a Geometria, e a Agricultura. Entretanto, “onde há cetro, há medo”. Após ouvir do Oráculo o futuro de seu destino, Saturno foi tomado pelo terro em ver algum de seus filhos questionando seu poder, fazendo com que ele passasse a engolir cada cria recém-nascida. O rei havia olhado para o abismo, e encontrado o tirano que vivia ali.
“Saturno devorando um filho”, Francisco de Goya, 1823.
Os mitos contam que Saturno acabou sendo enganado, engolindo uma pedra pensando ser Júpiter, seu último filho a nascer. O bebê fora levado pela mãe em segurança para crescer longe dos olhos do pai castrador, assim pôde prosperar e, finalmente, vingar seus irmãos ao destronar Saturno. E para sempre, Saturno se tornou o pária entre os deuses, o melancólico rei deposto. Como símbolo, tradicionalmente Saturno rememora a lenda do rei tirano, destronado pelo próprio filho. Para o astrólogo clássico Bartolomeu Anglicus, por exemplo:
Saturno é um planeta maligno, frio e seco, noturno e pesado e por isso, nas fábulas se apresenta velho. Seu círculo é o mais distante da Terra e ainda assim é o mais nocivo... Quanto à cor, é pálido, lívido como o chumbo, porque tem qualidades mortíferas, a saber, a frieza e a secura. Daí que o nascido ou concebido sob seu domínio, ou morrem ou tomam suas piores qualidades. Segundo Ptolomeu, em seu livro dos juízos, sobre os astros apresenta um homem feio, malfeitor, pesado, triste, raras vezes alegre ou risonho [16].
Saturno é filho da terra, e como planeta astrológico, guarda as mesmas qualidades que esse elemento: frio e seco. A Melancolia enquanto humor esfria e resseca o corpo, tornando-o magro, fraco, envelhecido, sem brilho e sem vida, como o ocaso e o outono. De acordo com as descrições de Surany, os melancólicos
tem a pele fria e seca, a tez fosca, os tecidos lisos, a musculatura pouco desenvolvida. Normalmente magro, já que come pouco (embora exigente quanto à qualidade de sua comida), elimina pouco e dorme mal. Tem tendência à insônia, aos fenômenos neurastênicos, à astenia nervosa, à anemia e ao emagrecimento. Sofre muitas vezes de instabilidade cardíaca e artritismo, hipertrofia ou atrofia dos tecidos, conforme se apresenta o conjunto do tema. Seus passos são enérgicos e elásticos, seus gestos também; anda curvado, seu pulso é pequeno e duro [17].
Para Robert Glas, melancólicos são pessoas de membros finos, muito preocupadas consigo próprias e, ao mesmo tempo, preocupadas em não cometer erros externamente [18]. Tanta preocupação arqueia o corpo sempre para baixo: a cabeça e pescoço, os ombros, a coluna, até mesmo a ponta do nariz e as pálpebras dos olhos. “Na totalidade da atitude humana aparece uma falta da força de se manter ereto. O melancólico prefere manter a cabeça inclinada para frente ou para o lado” [19]. O temperamento saturnino traz pesar, como se o corpo de um melancólico sofresse especialmente mais com os efeitos da gravidade [20]. Por isso melancólicos estão sempre com ar de cansados. “Quando alguém se observa a si mesmo ao invés de dirigir a atenção para o mundo, e seu olhar cai no vazio, também as pálpebras se cerram levemente” [21], afirma ainda o autor.
Além de olhos opacos, perdidos, a testa do melancólico costuma ser franzida, enrugada, devido à tensão e introversão constantes, porque “as forças que atuam de cima para baixo são mais intensas” [22]. A testa franzida indica ainda uma alta atividade mental, de permanente reflexão, como se o melancólico estivesse sempre enclausurado em sua própria mente. Esse “pensar demais” será retomado no próximo tópico.
Essa expressão pesada e anêmica é comum nas pessoas que sofrem por doenças físicas e psíquicas, e na velhice. Afinal, a Melancolia é da mesma natureza de Saturno, como um velho a mendigar pelos quatro cantos do mundo. Sua fixidez pela manutenção do poder, pelo controle do universo, é esboçada pelo terrível medo de ser destronado. Sinistro como a bílis-negra, pesado feito chumbo. Na obra “Saturno devorando seu filho”, de Francisco Goya, percebe-se a escuridão ao redor da figura esquelética e maléfica, o que
denunciava a sua condição de deus decadente e antigo, portando um gadanho, com o qual, a exemplo do tempo, sua identificação, ceifava a vida dos seres, ao invés dos cereais, como fazia na mitologia romana, era a antecipação do ícone da morte (…). Com sua lâmina, é responsável não apenas pela morte física, mas também pela morte em vida, pela falta de estímulo, pelos desligamentos traumáticos da vida humana, e, como consequência destes desligamentos, um desprendimento do mundo e do corpo que o habita, frieza, insensibilidade, desistência do ego, auto-anulação, renúncia, amargura de viver, pessimismo e melancolia [23].
[1] Raymond Klibansky, Erwin Panofs, Saturno y la Melancolia, p. 30.
[2] Jean Starobinski, A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza, p. 23.
[3] Andréia de Freitas Rodrigues, De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer: considerações sobre a inspiração filosófica de “Melancolia I”, p. 17.
[4] Jean Starobinski, A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza, p. 24.
[5] Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma Filosofia do Futuro.
[6] Jean Starobinski, A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza, p. 22.
[7] Jean Starobinski, A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza, p. 23.
[8] Raymond Klibansky, Erwin Panofs, Saturno y la Melancolia, p. 30.
[9] Raymond Klibansky, Erwin Panofs, Saturno y la Melancolia, p. 30.
[10] Robert Glas, Temperamentos: a face revela a pessoa, p. 9.
[11] G. B. De Surany, Manual de Astrologia Médica, p. 9.
[12] Moacir Scliar, Saturno nos trópicos, p. 88.
[13] Moacir Scliar, Saturno nos trópicos, p. 96.
[14] Moacir Scliar, Saturno nos trópicos, p. 96.
[15] Tereza de Castro Callado, A teoria da melancolia em Walter Benjamin: aversão do taedium vitae medieval e de seus elementos teológicos na concepção de melancolia do barroco, p. 10.
[16] Andréia de Freitas Rodrigues, De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer: considerações sobre a inspiração filosófica de “Melancolia I”, p. 23.
[17] G. B. De Surany, Manual de Astrologia Médica, p. 12, 13.
[18] Robert Glas, Temperamentos: a face revela a pessoa, p. 10.
[19] Robert Glas, Temperamentos: a face revela a pessoa, p. 1o.
[20] Robert Glas, Temperamentos: a face revela a pessoa, p. 11.
[21] Robert Glas, Temperamentos: a face revela a pessoa, p. 9.
[22] Robert Glas, Temperamentos: a face revela a pessoa, p. 9, 10.
[23] Francisco Fianco, Goya e a melancolia: prenúncios da decepção com o Iluminismo, p. 165.
Como eu adoro os seus textos, as várias camadas se astrologia, filosofia, história e tudo com muito lirismo. Espero que escrever um livros esteja nos seus planos. Como mudou o meu dia, ler seu texto. Obrigada.
amei! teremos textos sobres os outros temperamentos? fiquei curioso pelo fleumático